CONTEXTUALIZANDO
Para começar, quero deixar claro que não sou um cinéfilo. Adoro cinema, mas não tenho vastos conhecimentos, e isso se dá em razão da escolha do quê fazer com o tal do tempo. Todavia, na quarta-feira de cinzas, arrumei um tempo na minha agenda e fui ao cinema assistir o filme “Cisne Negro”. Sabia que o filme tinha sido indicado ao Oscar, na categoria de melhor filme, e que Natalie Portman ganhou o prêmio da Academy Awards de melhor atriz. Confesso que fiquei curioso em assistir o filme, pois queria ver a atuação, premiadíssima, da pequena Natalie Portman.
Conheci a Natalie no filme “Closer” (baita filme, por sinal), e esses dias, comentando sobre o filme com um amigo, fiquei sabendo que o início da carreira dela se deu no filme “O Profissional” (que ainda não assisti, mas assistirei). Ou seja, ela já era mais conhecida há tempos.
Outro amigo foi assistir e disse que o filme era “muito bom”, pois tinha música boa, enredo bom e um final surpreendente, daqueles que não dariam uma propaganda de margarina. Assim, me interessei ainda mais, lembrando que um filme para ser (no mínimo) “bom” tem que transcender as cenas da película e entrar no cérebro da gente para que possamos pensar “o” filme. Então, com a curiosidade engatilhada e a agenda organizada, tinha tudo para ir ao cinema. Quer dizer, quase tudo... Enfim, ingressos comprados, fomos assistir o “Cisne Negro”.
O QUE REALMENTE INTERESSA, É QUANDO O FILME COMEÇA...
Nina (que é a Natalie) é a bailaria quase-perfeita. Ou melhor, uma bailarina quase-morta. Daquelas que ficam dançando ao som de uma musiquinha de ballet naquelas caixas de jóias antigas que as gurias guardam suas bijouterias, muito mais que jóias. Porque embora bonitinha, é aquela mesmice de sempre. A mesma música, os mesmos passos, a mesma feição. A perpetuação da mesmice, a morte estando vivo. E é justamente aqui que reside a quase-perfeição, pois para obter a perfeição é necessário ter uma dose de insanidade. O perfeito é onírico. Só existirá com essa dose de insanidade que liberta os grilhões da filosofia da consciência maniqueísta e binômica permitindo a experiência coexistente (e constante para alguns) de sentir-e-viver. Sim porque, sentir é uma coisa, viver é outra. E sentir que se vive é a experiência avassaladora da comunhão perfeita entre a razão e a emoção. Ou melhor, o gozo harmônico e concomitante dos elementos humanos que Descartes pensou (erroneamente) serem completamente dissociáveis.
Nina era a bailarina quase-perfeita, pois só se preocupava com o passo correto no compasso exato da música. E na verdade, isso é a perfeição para quem pensa que entende de ballet (e das artes em geral). E Nina se achava perfeita e esperava o momento certo para ser convidada a ser a estrela. Só que para ser estrela, não se pode esperar um convite: ou se é, ou se torna por conta própria. Nina só queria uma oportunidade para demonstrar que era uma bailarina “perfeita”. Teve a oportunidade, mas não foi perfeita, porque sua perfeição eram passos e movimentos simétricos às cordas e bordões da orquestra. Faltava-lhe a naturalidade (condicional e condicionante) humana.
Insatisfeito, Leroy (Diretor Artístico da escola de ballet) torna-se o agente provocador, infiltrando-se, não na técnica artística de Nina, mas no circuito razão-emoção. Isso porque Nina era a perfeita “Cisne Branco” e a imperfeita “Cisne Negro”. E o curto-circuito se perfectibiliza na frase que ele fala para ela ainda na primeira metade do filme: “the only person standing in your way is you” (“A única pessoa existente no meio do teu caminho és tu mesmo”). Putaquepariu. Frase objetiva, complexa, forte, sincera e assustadora. E, justamente por isso, ver-da-dei-ra. O thriller psicológico não se instaura entre os personagens diretamente, mas no (infinito) particular de Nina. E essa prov(oc)ação para (se) sentir a Cisne Branco e (se) sentir a Cisne Negro é a impulsão do salto para a vida (glória). Surge a paixão.
Não adianta ter uma oportunidade nas mãos se não se tem a paixão para agarrá-la, aproveitá-la e vivê-la. É a irracionalidade, a condição animal que move o ser humano, que faz com que fiquemos naquele ímpeto de querer e fazer, e não deixar a idéia apenas no campo do pensar e imaginar, no mundo das vontades, no mundo de fantasia, onde a ilusão habita e a falta de coragem não possibilita o êxito ou o fracasso. Na paixão é assim, se há o feedback dá certo, se não há, não dá e ponto. Não existe meio-termo para paixão. Ou se está apaixonado ou não se está apaixonado e ponto final.
Nina amava o ballet mas faltava a paixão de viver-o-ballet. Ela não tinha se apaixonado pelo próprio amor que a fazia acordar todos os dias. E pela pressão de Leroy, Nina acaba desenvolvendo uma esquizofrenia que, para mim, é completamente secundária para o desenrolar do filme. O problema psicológico de Nina não é o foco do filme. Seus pensamentos, seus devaneios, seus delírios, que transformam suas ações em busca de viver e não alcançar a perfeição a partir da técnica tão somente é que são, pois transcende a mera subjetividade cerebral dando comando de ação e atitude àquela bailarina doce, certinha e imperfeita. A esquizofrenia (im)posta à Nina é o que a permite apaixonar-se e, conseqüentemente, viver.
Não é o movimento que define a perfeição, é o fazer o movimento que possibilita atingir o que se quer. E como possibilidade, pode dar certo ou não. Conhecimento, técnica, habilidade e atitude podem definir o talento “naturalizado”. O talento “nato” só existe enquanto paixão. E a paixão tem dois lados: o “amor” e o “ódio”. E somente com a dosagem correta desses elementos é que a paixão transforma-se na glória e o talento se (re)vela, naturalmente, para o mundo. E somente usando as pipetas cerebrais e emocionais, para calibrar mais um deles em detrimento do outro elemento em determinado momento, é que a (almejada) perfeição surgirá tal como a chuva que cai lá fora.
A paixão é irracional, enquanto o amor só pode ser vivido se racionalizado. Na peça (a vida real) não há somente espaço para a racionalidade. Como diria Hegel, “nada de grande no mundo se realiza sem paixão”. E é por isso que as ações mais (in)pensadas são tomadas na condição de (ser-)apaixonado.
Não bastava que dissessem à Nina. Era necessário que ela sentisse. E para sentir é necessário viver. Não estar vivo, mas vi-ver. Tem que ser um apaixonado para fazer as coisas darem certo, mesmo que dêem errado. E aqui não conseguimos fugir do código binário: é ou não é. Se está, ou não se está. É o autoconhecimento puro.
Tal como disse Vinicius em seu soneto terceiro no “Tríptico na Morte de Sergei Mikhailovitch Einstein”: “O cinema é o que não se vê, é o que não é. Mas resulta: a indizível dimensão”. O filme é, minimamente, EXTRAORDINÁRIO. Essa indizível dimensão, da paixão, é exatamente “sentir-se vivo”. Seja pelas palavras de Clarice, seja pelo ballet apaixonado (e apaixonante) de Nina, já sabemos (e por vezes não fazemos), que é aquela velha estória: ou toca, ou não toca. E para sentir-se vivo, deve-se conhecer a morte (ainda que somente enquanto fim). SENTI.
Nenhum comentário:
Postar um comentário