segunda-feira, 30 de maio de 2011

Apaixonar-se e Desapaixonar-se


E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a “experiência amorosa” à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço (p. 21 e 22).
Sem humildade e coragem não há amor. Essas duas qualidades são exigidas, em escalas enormes e contínuas, quando se ingressa numa terra inexplorada e não-mapeada. E é a esse território que o amor conduz ao se instalar entre dois ou mais seres humanos (p. 22).
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O amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável (p. 23).
O amor pode ser, e freqüentemente é, tão atemorizante quanto a morte. Só que ele encobre essa verdade com a comoção do desejo e do excitamento. Faz sentido pensar na diferença entre amor e morte como na que existe entre atração e repulsa. Pensando bem, contudo, não se pode ter tanta certeza disso. As promessas do amor são, dia de regra, menos ambíguas do que suas dádivas. Assim, a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar. E o fascínio da procura de uma rosa sem espinhos nunca está muito longe, e é sempre difícil de resistir (p. 23).
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Em suma essência, o desejo é um impulso de destruição. E, embora de forma oblíqua, de auto-destruição: o desejo é contaminado, desde o seu nascimento, pela vontade de morrer. Esse é, porém, seu segredo mais bem guardado – sobretudo de si mesmo (p. 24).
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O amor, por outro lado, é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto cuidado. Um impulso centrífugo, ao contrário do centrípeto desejo. Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar o que “está lá fora”. Ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto, e não vice-versa, como no caso do desejo. Amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. No amor, o eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo. O eu que ama se expande doando-se ao objeto amado. Amar diz respeito a auto-sobrevivência através da alteridade. E assim o amor significa um estímulo a proteger, alimentar, abrigar; e também à carícia, ao afago e ao mimo, ou a – ciumentamente – guardar, cercar, encarcerar. Amar significa estar a serviço, colocar-se à disposição, aguardar a ordem. Mas também pode significar expropriar e assumir a responsabilidade. Domínio mediante renúncia, sacrifício resultando em exaltação. O amor é irmão xifópago da sede de poder – nenhum dos dois sobreviveria à separação (p. 24).
Se o desejo quer consumir, o amor quer possuir. Enquanto a realização do desejo coincide com a aniquilação de seu objeto, o amor cresce com a aquisição deste e se realiza na sua durabilidade. Se o desejo se autodestrói, o amor se autoperpetua (p. 24).
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Um relacionamento, como lhe dirá o especialista, é um investimento como todos os outros: você entrou com tempo, dinheiro, esforços que poderia empregar para outros fins, mas não empregou, esperando estar fazendo a coisa certa e esperando também que aquilo que perdeu ou deixou de desfrutar acabaria, de alguma forma, sendo-lhe devolvido – com lucro. Você compra ações e as mantém enquanto seu valor promete crescer, e as vende prontamente quando os lucros começam a cair ou outras ações acenam com um rendimento maior (o truque é não deixar passar o momento em que isso ocorre). Se você investe numa relação, o lucro esperado é, em primeiro lugar e acima de tudo, a segurança – em muitos sentidos: a proximidade da mão amiga quando você mais precisa dela, o socorro na aflição, a companhia na solidão, o apoio para sair de uma dificuldade, o consolo na derrota e o aplauso na vitória; e também a gratificação que nos toma imediatamente quando nos livramos de uma necessidade. Mas esteja alerta: quando se entra num relacionamento, as promessas de compromisso são “irrelevantes a longo prazo” (p. 28 e 29)
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Comprometer-se com um relacionamento, “irrelevante a longo prazo” (fato de que ambos os lados estão cientes!) é uma faca de dois gumes. Faz com que manter ou confiscar o investimento seja uma questão de cálculo e decisão. Mas não há motivo para supor que seu parceiro ou parceira não deseje, se for o caso, exercitar uma escolha semelhante, e que não esteja livre para fazê-lo se e quando desejar. Essa consciência aumenta ainda mais sua incerteza – e a parte acrescentada é a mais difícil de suportar. Ao contrário de uma escolha pessoal do tipo “pegar ou largar”, não está em seu poder evitar que o parceiro ou parceira prefira sair do negócio (p. 30)
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Primeira condição: deve-se entrar no relacionamento plenamente consciente e totalmente sóbrio. Lembre-se: nada de “amor à primeira vista” aqui. Nada de apaixonar-se... Nada daquela súbita torrente de emoções que nos deixa sem fôlego e com o coração aos pulos. Nem as emoções que chamamos de “amor” nem aquelas que sobriamente descrevemos como “desejo”. Não se deixe dominar nem arrebatar, e acima de tudo não deixe que lhe arranquem das mãos a calculadora. E não se permita tomar o motivo da relação em que você está para entrar por aquilo que ele não é nem deve ser. A conveniência é a única coisa que conta, e isso é algo para uma cabeça fria, não para um coração quente (muito menos superaquecido). Quando menos a hipoteca, menos inseguro você vai se sentir quando for exposto às flutuações do mercado imobiliário futuro; quanto menos investir no relacionamento, menos inseguro vai se sentir quando for exposto às flutuações de suas emoções futuras (p. 37).
Segunda condição: mantenha-o do jeito que é. Lembre-se de que não é preciso muito tempo para que a convivência se converta no seu oposto. Assim, não deixe o relacionamento escapar à supervisão do chefe, não lhe permita desenvolver sua lógica própria e, especialmente, adquirir direitos de propriedade – não deixe que caia do bolso, que é seu lugar. Fique alerta. Não durma no ponto. Observe atentamente até mesmo as menores mudanças naquilo que Jarvie chama de “subcorrentes emocionais” (obviamente, as emoções tendem a se transformar em “subcorrentes” quando deixadas livres das amarras do cálculo). Se notar alguma coisa que você não negociou e para a qual não liga, saiba que “é hora de seguir adiante”. É o tráfego que sustenta todo o prazer (p. 37).
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Assim, viver juntos (“e vamos esperar para ver como isso funciona e aonde vai nos levar”) ganha o atrativo de que carecem os laços de afinidade. Suas intenções são modestas, não se prestam juramentos, e as declarações, quando feitas, são destituídas de solenidade, sem fios que prendam nem mãos atadas. Com muita freqüência, não há congregação diante da qual se deva apresentar um testemunho nem um todo-poderoso para, lá do alto, consagrar a união. Você pede menos, aceita menos, e assim a hipoteca a resgatar fica menor e o prazo de resgate, menos desestimulante. O futuro parentesco, quer desejado ou temido, não lança a sua longa sombra sobre o “Viver juntos” é por causa de, não a fim de. Todas as opções mantêm-se abertas, não se permite que sejam limitadas por atos passados (p. 46).
As pontes são inúteis, a menos que cubram totalmente a distância entre as margens – mas no “viver juntos” a outra margem está envolta numa neblina que nunca se dissipa, que ninguém deseja dissolver nem tenha afastar. Não há como saber o que se vai ver quando (se) a névoa se dispersar – nem se de fato existe alguma coisa encoberta. A outra margem está mesmo lá, ou será ela apenas uma fata morgana, uma ilusão criada pela neblina, uma fantasia da imaginação que nos faz ver formas bizarras nas nuvens que passam? (p. 46 e 47).
Viver juntos pode significar dividir o barco, a ração e o leito da cabine. Pode significar navegar juntos e compartilhar as alegrias e agruras da viagem. Mas nada tem a ver com a passagem de uma margem à outra, e portanto seu propósito não é fazer o papel das sólidas pontes (ausentes). Pode-se manter um diário de aventuras passadas, mas nele há apenas uma ligeira referência ao itinerário e ao porto de destino. È possível que a neblina que cobre a outra margem – desconhecida, inexplorada – se suavize e desapareça, que venham a emergir os contornos de um porto, que se tome a decisão de atracar, mas nada disso é, nem deve ser, anotando nos registros de navegação (p. 47).

ZYGMUNT BAUMAN, in "Amor Líquido".

quarta-feira, 18 de maio de 2011

encontro marcado




A morte é próxima. Nesses dois últimos meses a morte esteve próxima de mim duas vezes: no final de março ela chamou um Amigo, que por vias próprias deu um jeito de ir ao encontro dela, e hoje, ela marcou o inadiável encontro, através de uma porra de doença chamada câncer, com meu Tio.
Meu Amigo se tornou Amigo por outro Amigo. Nesses ditos encontros-abençoados que temos pela vida. Alguém que mesmo por pouco tempo, considerando a infinidade de dias e meses do calendário gregoriano, compartilhou adversidades, venceu obstáculos e torceu pela vitória de coisas simples, as quais demonstravam evitar as pequenas mortes do dia-a-dia. Almoçamos exatamente uma semana antes do encontro. O sentir a vida no decorrer do tempo foi simples, crua e constante.
Com meu Tio, que foi meu Tio mesmo distante estando perto, que esteve junto comigo em diversos reveillons, que torceu junto comigo nas eliminatórias da copa do mundo de 94, bem como nos jogos da copa, que esteve ao meu lado na minha confirmação juntamente com minha Tia, que me parabenizou em dois momentos muito especiais que ele sabe quais são. E que mesmo distante depois de estarmos distante, torceu por mim. A última vez que o vi foi no final do ano passado, e ele já estava lutando contra a doença maldita fazia poucos meses.
Enquanto jantava hoje, não consegui nem ficar observando as pessoas nas mesas todas encasacadas por causa do frio na capital paulista, o ritmo dos garçons para atender a demanda, a decoração do restaurante que não era simplória, nem como ouvir as cordas e bordões tocadas ao vivo no canto do restaurante. Só pensava na morte. E pensava na(s) minha(s) [pequena(s)] morte diante do estado de morte que entristeceu diversos corações nesses últimos dois meses. E confrontei a morte com a vida. E na verdade, o que importa é o que fizemos no nosso tempo diante da própria vida. A nossa história. A protagonização do infinito no presente perpétuo de tudo, porque o encontro com ela [a morte] virá, e isso é inegável e matemático.

terça-feira, 17 de maio de 2011

oco(?)


Corpo sem alma é igual a alma sem corpo.
Só existe em outra dimensão, a da (in)existência.