domingo, 31 de outubro de 2010

O preconceito, a verdade e a inocência.


"Ela nos contou o milagre, não o santo". Ângela Vicário, por sua vez, não arredou o pé. Quando o juiz instrutor perguntou, com seu estilo lateral, se sabia quem era o defunto Santiago Nasar, ela lhe respondeu impassível:
- Foi o meu autor.
Assim está no sumário, mas sem qualquer outro detalhe de modo ou lugar. Durante o julgamento, que durou apenas três dias, o promotor pôs o seu maior empenho na inconsistência dessa acusação. Era tal a perplexidade do juiz instrutor ante a falta de provas contra Santiago Nasar que seu bom trabalho parece, por momento, desvirtuado pela desilusão. A folhas 416, de seu próprio punho e letra e com a tinta vermelha do boticário, escreveu uma nota marginal: Dai-me um preconceito e moverei o mundo. Debaixo dessa paráfrase de desânimo, com um traço feliz da mesma tinta de sangue, desenhou um coração atravessado por uma flecha. Para ele, como para os amigos mais próximos de Santiago Nassar, o próprio comportamento do assassinado nas últimas horas foi uma prova cabal de sua inocência.
Na manhã de sua morte, com efeito, Santiago Nasar não tinha tido um só instante de dúvida, embora soubesse muito bem qual seria o preço da injúria que lhe imputavam. Conhecia a índole hipócrita de seu mundo, e devia saber que a natureza humilde dos gêmeos não era capaz de resistir ao escárnio. Ninguém sabia muito bem quem era Bayardo San Román, mas Santiago Nasar conhecia-o o bastante para saber que, sob suas vaidades mundanas, era tão dominado como qualquer outro por seus preconceitos de origem. De maneira que a sua despreocupação consciente teria sido suicida. Além disso, quando soube, afinal, no último instante, que os irmãos Vicário o estavam esperando para matá-lo, sua reação não foi de pânico, como tanto se disse, foi antes a desorientação da inocência.


Do livro do mês, "CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA", de Gabriel García Márquez.

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