sábado, 18 de setembro de 2010

O Camelo, o Dragão e o Leão

"Providos dos genes de nossos antepassados, recebemos, durante a infância e a adolescência, uma miríade de normas sociais; deveriam elas, por princípio, aprimorar-nos para uma vida superior. Elas o fazem; mas, por caminhos escusos. Pois representam, de acordo com o simbolismo várias vezes empregado por Nietzsche, toda a carga depositada sobre a corcova do pobre camelo, que a carrega a cada dia em maior número, com maior pesar, indiferente aos olhos do seu dono.
Acontece-nos carregar a carga até o dia em que, por qualquer destas indefectíveis forças misteriosas, internas ou externas, nos vemos obrigados a fomar o caminho que não é de ninguém. Deixamos o hábito, a rotina, e seguimos esse caminho algo extasiados, envoltos no odor agradável de uma sonhada liberdade de ser. Ocorre que ainda somos camelos e temos sobre as costas um peso que nos fatiga e não nos permite o mergulho pleno nesta liberdade. Então, conforme Nietzsche, topamos pela frente com um tremendo dragão verde, soltando bolas de fogo pelas nervosas narinas, que nos sacode de nós mesmos num grande e largo susto; este é o momento crítico, pois não há volta: temos que enfrentar, na nossa condição de camelo, o feroz dragão que nos impede, sem qualquer escrúpulo, de prosseguirmos no nosso caminho.
Neste momento, temos duas opções. Ou nos rendemos ao dragão, que nada mais é do que a projeção daquela carga de deveres e obrigações que nos foi imposta desde criança, e então nos tornamos o homem medíocre, ou sacrificamos em todos os versos aquelas normas, o exercício do camelo, símbolo fatídico de nossa vida rotineira, hipócrita e servil. Se somos cavalheiros o suficiente e dotados de coragem solar, transformamo-nos, ao alvorecer, num singular leão de olhos vermelhos, pronto para colocar o dragão sob suas poderosas garras".


Do livro do mês, "O HOMEM MEDÍOCRE", de José Ingenieros.

4 comentários:

  1. Ah, essas "tríades" perturbadoras!

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  2. Guria, show teus pensamentos sobre as "tríades". Sair do lugar-comum, livrar-se do senso-comum, diante da chegada do "outro" (agora terceiro), é realmente inquietante!
    Beijo

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  3. Alexandre:
    É misteriosa, inquietante, perturbadora e... imprevisível, dependendo dos protagonistas... e isso não é uma delícia na vida normal, morna e medíocre que levamos?
    No "O Segredo dos Seus Olhos", que não sei se já viste, uma das ideias é justamente essa. Um dos personagens se dá conta que viveu de "nada" por 25 anos e se surpreende ao descobrir que o outro não. Foi atrás do que queria e fez acontecer da maneira que considerava correta (abstraindo-se de qualquer argumentação jurídica, julgamento moral ou legal). Simplesmente transgrediu e fez o que considerava justo. Quem está certo?!
    O que perseguimos e que atitude tomamos diante disso? Estamos condenados a escolher e essa escolha é o que nos faz pulsar e, definitivamente, o que mais nos revela!
    Baci mile!

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  4. Está certo quem é fiel para viver seguindo seu próprio coração. O que é uma escolha, uma renúncia e um risco (mais uma tríade!). Somente lutando nossas próprias batalhas, internas e externas, é que será possível dizer para si próprio se eu estava certo ou errado. Quem pode dizer se acertei ou errei, sou eu a partir das minhas próprias experimentações. Ítaca só oferece a viagem! Não é preciso mais nada, pois o quê, verdadeiramente importa (para as almas não-pequenas), é a viagem.
    A tríade assusta porque rompe com o binário e, obrigatoriamente, coloca o complexo em pauta. E esse (novo) inesperado crepúsculo é o que nos (des)mascara.
    Lembraste muito bem de Nietzsche: "somos humanos, demasiadamente humanos"!!
    Beijo,

    PS: ainda não esta na hora de assistir esse filme!

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